sábado, 4 de agosto de 2007

« CONTOS » 1º


,- Vamos aproveitar o fresquinho da manhã para viajarmos até à minha aldeia onde gostaria de vos mostrar alguns dos encantadores lugarejos que tornaram a minha infância inesquecível.
-Mas, Avó, como tu tornas mágico cada momento e cada lugar por onde passas, irás falar-nos e mostrar-nos apenas um lugar em cada visita que façamos a esta terra situada nas faldas do Marão e sobranceira ao irrequieto rio Douro que corre indiferente a tudo que lhe fica nas margens.
-Combinado!
E nesta alegre cavaqueira os quilómetros foram sendo tragados pelo "Golf "que,embora antigo, não está velho.
Lá chegamos ao "Miradouro",à casa onde nasci,me criei ,ri ,chorei e me diverti.
Muitas lembranças fervilharam na minha mente. Procurei acalmar o turbilhão de recordações e concentrar-me apenas numa .
Foi difícil seleccionar um episódio entre tantos que me deliciam a memória e me causam tantas saudades!
Mas, ao olhar para o velho salão que durante tantos anos serviu de moradia ao nosso" Zé Maria",ocorreu me a chegada deste elemento à nossa casa.
-Eu tinha cinco anos. Estavamos em fins de Setembro!
As uvas,regalo das abelhas que voavam em sua volta e lhes sugavam o doce suco, pareciam dizer:"estamos prontas para ser colhidas e trnsformadas no delicioso néctar dos deuses."
-E na verdade,as vindimas começaram. Essa faina tão alegre,com as vindimadeiras cantando todo o dia, cortando as uvas e metendo -as nos cestos que iriam ser levados às costas para os lagares. Aí seriam pisadas e transformadas em vinho.
A subida íngreme dos carreiros tortuosos da quinta, eram calcorreados várias vezes ao dia pelos "homens dos cestos "cheios de uvas ,até cairem dentro dos lagares.
Nas viagens de regresso à vinha com os cestos vazios ,eu aproveitava a boleia dentro de algum dos cestos nas costas de qualquer bom homem que me transportava até junto das vindimadeiras para cantar com elas as alegres cantigas que eu sabia de cor e salteado. E para merecer uns trocaditos no fim da vindima lá ia apanhando uns bagos que caíam no chão.
- E agora imaginem em que estado eu chegava ao fim do dia ,viajando dentro dos cestos impregnados de mosto doce e pegajoso!
-Mas quê?-nada que um bom banho antes do jantar e uma camisinha de noite fresquinha e perfumada pelos aromas dos campos,não repusessem as minhas energias!
-Mas,continuando com a história linda e comovente do nosso Zé maria que passou a ser um membro da nossa família.
-Era uma tarde calma e morna de Setembro e eu estava no quintal com a minha Mãe a regar os canteiros de lindos ,coloridos e perfumados cravos e outras flores que enfeitavam o muro sobranceiro ao caminho público.
Lá no fim do caminho ,chamado " Parede Nova ",assomou uma figura masculina franzina e assustada. Eu não o conhecia ,mas minha mãe clamou admirada: É o Zé Maria do doutor!...
-Então, Zé maria, que te traz por cá depois de tantos anos?
-Venho ver a minha tia...
-E aquela figura de menino assustado que vestia uma calça de sarja,uma camisa de riscado azul,boina galega na cabeça e descalço,mesmo depois de ser tão maltratado pela "tia ",companheira do seu pai que havia falecido há bastantes anos, ainda se lembrou de a vir visitar.
Ele tinha desaparecido da aldeia fustigado pelos maus tratos e durante muitos anos serviu alguns lavradores,tratando o gado, segando erva, ao frio, à chuva, com neve ou com sol intenso.
E agora com vinte e três anos, anos de fome, trabalho árduo, sofrimentos e saúde precária, o " Zé Maria "regressava à aldeia, pobre, desiludido e procurando um bocadinho de carinho.
Mas infelizmente não encontrou nada do que tanto ansiava.E a tia recebeu-o, oferecendo-lhe dormida num palheiro.
Como era a época das vindimas o nosso Zé Maria procurou trabalho nas quintas das redondezas, onde cortava uvas de dia e à noite nas "pousas ", isto é ,na pisa das uvas nos lagares. E como a quinta dos meus pais era a mais próxima da casa da "tia ",foi aí que ele mais trabalhou.
E numa tarde no lagar,surgiu a feliz ideia de propor ao Zé Maria se queria ficar na nossa casa a tratar da vaca e do cavalo. Escusado será dizer que essa ideia brilhante partiu de mim e dos meus irmãos. Fomos transmiti-la aos nossos pais que acederam de bom grado. E deste modo simples, porque simples éramos nós, crianças a quem nada faltava, trouxemos para a nossa família mais um elemento que ficou connosco quase sessenta e cinco anos.
Nessa tarde já ficou na nossa companhia. Não voltou à casa da tia, porque não tinha nada que buscar, pois tudo o que possuía, tinha consigo:as calças de sarja, a camisa de riscado e a boina galega.
O sr. Manuel, feitor da nossa casa, levou-o ao salão e numa banheira de zinco, o mais sofisticado dessa época, com água quente e sabão deu-lhe um bom banho, cortou-lhe o cabelo rente para o livrar da camada de parasitas que lhe faziam companhia.
Vestiu-lhe roupa lavada do meu irmão mais novo, que lhe assentou que nem uma luva, porque o Zé Maria,era magro e pequeno, pois a fome, o frio e os maus tratos não o deixaram desenvolver.
O sr. Manuel verificou que o novo elemento da nossa família tinha no meio do peito uma ferida enorme e profunda, com muito mau aspecto.
Dali partiu para a consulta na " Casa do Povo". O médico,um santo homem de nome " Dr Loureiro Dias",sossegou o meu pai comunicando-lhe que a ferida não era maligna e que com muitos cuidados iria curar-se. Foi medicado e quem todos os dias lhe fazia o curativo era a minha Mãe, com a ajuda do meu irmão Noberto.Durou algum tempo a sarar, mas ficou bom ,graças a Deus e à boa enfermeira que era a "D. Palmirinha".
OS anos foram passando, o Zé Maria foi-se recompondo, porque agora tinha uma "Família".Mas de todos os membros que a constituiam, por quem ele nutria um amor incomensurável era pela sua menina a quem ele apelidava de "Alegria desta Casa".Era a menina que ele muitas vezes levava à escola ,ia buscar à "Rede" estação do caminho de ferro,quando ela vinha do colégio para gozar as férias,acompanhava à vila para carregar os sacos das compras e em tantos momentos que terei ocasião de mencionar.
O Zé Maria proporcionou-me muitas horas de alegria e ,sem saber, ajudou-me a formar o meu carácter. Tornei -me,dia a dia ,mais humana,revendo-me naquela figura que não teve infância, não teve adolescência e que só começou a viver a partir daquele dia em que todos concordamos que ele ficava a fazer parte da nossa família.
-E ,meus queridos netos,isto é,em resumo,a história do nosso "Zé Maria...
Irei falar dele muitas vezes noutros episódios da minha vida.

Adélia Barros

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