quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

AFOGA SANTOS...

Há muitos ,muitos anos num pequenino povoado da aldeia de Barqueiros ,aldeia situada na margem direita do rio Douro,habitavam algumas dezenas de pessoas.Entre essas pessoas ,todas muito humildes e necessitadas,distinguiam-se duas muito especiais:avó e neto.
Viviam num casebre muito pobre a que eles pomposamente chamavam sua casa,porque era a única que conseguiam ter, dada a sua precária situação financeira.A avó era muito velhinha,cansada das agruras da vida , vergada ao peso dos anos e com muito pouca saúde.O neto ,de nome Francisco,era ainda muito pequenino para trabalhar.
Viviam com muitas dificuldades.A avó, para garantir o seu sustento e em especial o do neto do seu coração,percorria a sua aldeia e outras aldeias vizinhas ,pedindo ajuda.
Havia dias mais produtivos que outros,mas à tardinha,regressava sempre cansada e envergonhada da sua triste condição de indigente À porta de casa esperava-a ansioso e faminto o pequenino Francisco.Sempre a mesma pergunta:que traz aí ,avó ? Eu apanhei lenha na mata para a avó acender a lareira!
E os dois, de mãos dadas,dirigiam-se ao interior da casa.A avó pousava sobre a velha mesa de pinho o fruto da caridade humana que naquele dia se tinha compadecido dela.O Francisco remexia nervosamente aquele tesouro na esperança de encontrar alguma coisa que lhe matasse a fome.A avó, passando a sua mão enrugada pelos cabelitos do menino,com sua voz rouca dizia-lhe:
-Espera só mais um pouco e a avó vai fazer uma panela de sopa que irá consolar-nos, acompanhada da broa que me deu a vizinha.
E o Francisco esperava pelo manjar, contendo a saliva que lhe enchia a boca.
Comida a tão ansiada sopa que, quase sempre, tinha apenas alguma batata ,couves e era engrossada com farinha de milho,avó e neto deitavam-se na única cama que havia na casa ,rezavam as suas orações e adormeciam tranquilamente.
Na aldeia, no Inverno,as pessoas abastadas matavam os seus porcos que lhe garantiam a subsistência durante todo o ano. E havia sempre alguém que se lembrava da triste velhinha que fazia das tripas coração para que o seu menino tivesse todos os dias alguma coisa para comer,dando-lhe um bocadinho da carne do porco que matou.
Próximo do Carnaval,uma vizinha deu à avó do Francisco uma chouriça.Ela guardou o acepipe para comer no Entrudo,mas avisou-o:
-Olha que a chouriça é para comermos no Carnaval,está guardada no armário ,mas não lhe toques!...
Todos os dias a triste anciã saía para a sua rotina e o Francisco ficava em casa aguardando o seu regresso.De vez em quando abria o armário onde a chouriça esperava pelo Entrudo para fazer as delícias dos seus amigos.
Imagine-se o sacrifício que aquela criança fazia para resistir à tentação de saborear a chouriça
proibida! Mas tantas vezes abriu o armário,e certamente por vezes com muita fome,que um dia não resistiu e comeu o petisco.
Quando a avó se apercebeu do desaparecimento do tesouro, perguntou ao neto quem o tinha comido.Claro que o Francisco não confessava que tinha sido ele.A avó desesperava sempre que fazia a pergunta,mas obtinha sempre a mesma resposta:não fui eu.
Tinha de descobrir uma artimenha que fizesse o Francisco dizer a verdade.E conseguiu.
Lá em casa havia uma imagem de S. António muito antiga esculpida em madeira.Então a velha senhora chamou o neto junto da imagem e fez a pergunta:-S António quem comeu a chouriça? Esperou alguns segundos e ,com voz disfarçada ,ela própria deu a resposta:-Foi o Francisco.Perante esta resposta do santo ele não teve saída.Teve mesmo de confessar.
A avó deu uma valente sova no Francisco que ficou furioso com o S. António ,por ter descoberto o seu segredo e logo nesse instante jurou vingar-se.
No dia seguinte ,logo que a velhinha saíu ,o Francisco pegou na imagem ,meteu-a num saco de pano,amarrou-lhe uma corda,pô-la às costas e dirigiu-se à margem do rio Douro.Atirou-o à água para que se afogasse.Mas como a imagem tinha muitos anos ,estava toda carunchosa. Em vez de ir ao fundo como ele desejava, vinha à tona da água ,expelindo lufadas de caruncho como se estivesse a soprar.O Francisco desesperado com a situação repetia constantemente:-Tu, meu malandro até agora falavas e agora bufas?Mas tens de ir para o fundo do rio.Então puxou o saco para fora da água,abriu-o e colocou dentro uma grande pedra. Voltou a arremessá-lo para a água e desta vez estava vingado;o S.António afogou-se.
Regressou a casa e aguardou a chegada da avó.Esta ao dar pela falta da imagem, perguntou-lhe:
-Onde está o Santo?
Ao que o Francisco respondeu sem mais rodeios:
-Afoguei-o no rio!
A avó ficou sem palavras ,porque entendeu a atitude do neto.
O Francisco sentiu-se vitorioso e contou o seu feito a todas as pessoas da aldeia.A partir daí todos passaram a chamar-lhe o Afoga Santos.E esta alcunha passou para os filhos,para os netos e demais gerações que se lhe seguiram.
Ainda hoje em Barqueiros há descendentes do Afoga Santos que continuam a ser conhecidos por esse mesmo epíteto.

Sem comentários: